Tudo começou quando tive de pensar na forma que me parecia mais acessível para uma exposição sobre “a violência e a saúde mental das crianças. Pretendia uma grande viagem ao passado de modo a poder dispor de algumas ideias e depois poder organizá-las para o que me fora proposto. Contudo, não fui além deste nosso ano que foi consagrado à cultura da paz e que vem sendo comemorado, por vezes, com uma indisfarçável falta de entusiasmo, quando deparei-me rapidamente com umas imagens gravadas na minha mente.
Pois, fiquei quase que amarrado àquelas imagens que acompanhei num dos canais de televisão que nos é dada a oportunidade de acompanhar.
Um moço dos seus doze anos, todo a rigor, sereno, grave, atrás do púlpito luxuoso, ajustado para a ocasião, pegou numas folhas e começou a ler para uma plateia de crianças todas bem comportadas. Disse que ao dar inicio aos trabalhos devia alertar para “os desafios do nosso tempo”.
Embalado, eu, que sempre tive uma certa paixão pela oratória, ia-me deliciando com as palavras sabiamente escolhidas, as frases que se combinavam e transmitiam as ideias de um discurso elaborado, pretensamente o retrato de uma “infeliz situação actual e as suas repercussões na infância”.
As mazelas de aqui, tinham naturalmente a sua origem no que outros, convenientemente citados, tinham determinado. A doença, a fome, as minas e amputações, o sofrimento, tudo tinha a mesma origem. O alerta teria de ser dado sob pena de deixarem tudo a perder. Ficou subjacente que falava das conquistas alcançadas a custo de sacrifícios. Retornou com a maior serenidade a sua chamada de atenção para os “desafios do nosso tempo”.
Distraidamente, ia acompanhando aquele discurso concebido com todos os condimentos da mais pura retórica, para aquelas centenas de crianças e adolescentes quietos, inocentes.
Só então, notei que o discurso era demasiado lindo; com um cheiro a falso que exalava daquela conversa toda; algo, portanto, deveria estar por trás.
Era um discurso verdadeiramente adulto, para adulto, posto por um adulto na boca de uma criança! Parei um pouco e, revoltado, perguntei-me se não seria violência pôr na boca de uma criança um discurso adulto, tanto na linguagem e expressão como também na hipocrisia; um discurso para consumo de adultos disfarçadamente destinado a crianças reunidas para o efeito!
O tema que estava a preparar, foi tomando forma à medida que meu pensamento podia recuar. Entretanto, ficou a imagem do nosso orador martelando sobre os desafios do nosso tempo. Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra