quarta-feira, 14 de maio de 2008

Tempo de Loucura



Mal entrei naquele vetusto autocarro que rangia cada vez que alguém punha um pé nos degraus de acesso, depois de quase maquinalmente ter feito um aceno com a cabeça, fui procurando alguma cadeira não danificada, que muito estranhamente, lugares vagos, havia nesse dia.

Um dos passageiros ao aceder com a cabeça, levou-me a pensar que esperava que os nossos olhos se cruzassem e entendi ser esse um convite para ocupar o lugar ao lado dele.

Fi-lo com o mesmo vagar que o autocarro tentava arrancar, aliás, meu estado de espírito naquele início de tarde de domingo não era dos mais favoráveis, não podia ser melhor. Não me ocorreu no momento, mas, depois senti que não estava nos meus dias de conversa.

Eu e o meu companheiro de banco viajámos, lado a lado, sem que houvesse um pio de um lado ou de outro. Descemos, na mesma paragem e só depois soube que não era pura coincidência.

Juntos atravessámos a rua e ele, então quase interrompeu o silêncio; convidou-me para um quiosque próximo. Ocorreu-me, maldosamente, sem sequer lhe dirigir o olhar, que ele iria tentar cravar-me algo. Dinheiro, bebida ou qualquer coisa.

Sentámo-nos e, em silêncio, fiquei à espera, só faltando a preparação para a desculpa, que em certas ocasiões custam os fios de cabelo da cabeça. Não tendo sido directo, melhor, não tendo ele dito nada, olhei para a cara dele e repentinamente disse-lhe: Que cara de enterro, rapaz!

No mesmo instante, duas lágrimas desceram lentamente pelos sulcos estranhamente profundos do seu rosto e finalmente falou. “Queria ver-te há algum tempo. Há qualquer coisa. Só tenho pensado na morte. Penso no suicídio o tempo todo!”

Um dos meus antigos professores perante a turma de médicos (quase) todos recém-formados, aspirantes a psiquiatras, causava-nos espanto: “Não há psiquiatra que se preze que não tenha tido um paciente que tenha cometido suicídio; não deverá haver um segundo. É como a paragem cardio-respiratória para o médico. Dificilmente vão escapar de perder um, podem é nunca vir a saber, o que é mau!

Habituámo-nos àquelas conversas quando nos demos conta que ele repetia tudo aquilo para avivar os nossos medos, receios e fantasmas.

Mas, não! O rapaz estava lá, a mesma cara, certamente o mesmo pensamento. Era demais para mim. Tinha bem presente um outro, consumado, há bem pouco. Não! Eu tinha que fazer algo.
Não podia suportar um segundo caso e praticamente ao mesmo tempo. Tempo de loucura!

Daniel Silves Ferreira