Os cabelos prateados, a cara borrada de pó de arroz, os lábios tingidos de vermelho carmesim, davam àquela senhora já sexagenária, um ar cómico.
Puxava o marido pela manga do blusão e não se fez rogada. Falava com uma rapidez tremenda e uma mudança repentina de assunto que dificultavam a compreensão. Depois de algum embaraço meu ao convidá-la para sentar-se, não hesitou em oferecer a cadeira ao esposo, ainda calado.
Disse ter concordado com o marido dado que das outras vezes já tinha aceite ficar internada para tentar curá-lo, mas, sem uma solução, queria que ele ficasse hospitalizado até a cura. Velho e não podendo gozar a vida, só podia sentir ciúmes dela.
Perguntou-me pelo nome, que não ouvira quando me apresentei como não esperou pela resposta e, já ìa dizendo que eu era pardo, cor linda que os patrícios quando não o eram, tinham-no no sangue. Uma cor bonita. Bastava ver os colares que, graças a Deus, sempre teve. Deus, lá dos céus, que também lhe tinha dado os poderes e a mais ninguém.
Tentei intrometer-me, mas, estava ela já à janela daquele Pronto Socorro. Pôs-se a cantar “I´m singing in the rain..” e quis sair. O marido se opôs com firmeza. Irritada, virou-se para mim e, disse: “ Cuide deste homem que não sabe o que é a vida; eu vou tomar um banho. A chuva é maravilhosa”…
O marido pôde, então, participar na entrevista. A esposa era conhecida no hospital, onde já tinha sido internada. Mal a mulher ouviu a última palavra berrou: “Você é que vai ficar internado” e fez ameaças que ele não ligou.
No meio de um mexer constante e da contenção do marido soube que não dormia e, nesse dia, ela tinha desarrumado tudo de tanto arrumar, tomado mais de dez banhos; só queria sair porque estaria enfadada com a vida de ócio. As crises pareciam ter desaparecido e ela abandonou os remédios.
Adoecera trinta e cinco anos antes, tinha vários internamentos e seguimento regular naquele hospital desde que mudaram de cidade “para poderem estar perto do filho que podia ajudar nas crises”.
“Crises! – replicou – você é que está em crise, crise de ciúmes e hoje você vai ver o que meu diploma vale”.
Foi por aí que entrei no seu raciocínio e voltaram as gargalhadas, apesar da notável rouquidão.
A decisão foi o internamento. Aceitou, para se ver “livre de um homem doente de ciúmes”.
Depois, foram semanas e meses de convívio, sempre alegre, com os cabelos prateados, a pele branca sem pó de arroz. Inspirava-me simpatia e recordava-me as imagens, as palavras, a rapidez das frases quase ininteligíveis, a actividade exagerada, a alegria e depois a irritabilidade, o “ du coq à l´âne”(literalmente, do galo ao burro, fuga de ideias, para nós),que aprendera a reconhecer anos atrás.
Uma história de um outro tempo. Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra
Puxava o marido pela manga do blusão e não se fez rogada. Falava com uma rapidez tremenda e uma mudança repentina de assunto que dificultavam a compreensão. Depois de algum embaraço meu ao convidá-la para sentar-se, não hesitou em oferecer a cadeira ao esposo, ainda calado.
Disse ter concordado com o marido dado que das outras vezes já tinha aceite ficar internada para tentar curá-lo, mas, sem uma solução, queria que ele ficasse hospitalizado até a cura. Velho e não podendo gozar a vida, só podia sentir ciúmes dela.
Perguntou-me pelo nome, que não ouvira quando me apresentei como não esperou pela resposta e, já ìa dizendo que eu era pardo, cor linda que os patrícios quando não o eram, tinham-no no sangue. Uma cor bonita. Bastava ver os colares que, graças a Deus, sempre teve. Deus, lá dos céus, que também lhe tinha dado os poderes e a mais ninguém.
Tentei intrometer-me, mas, estava ela já à janela daquele Pronto Socorro. Pôs-se a cantar “I´m singing in the rain..” e quis sair. O marido se opôs com firmeza. Irritada, virou-se para mim e, disse: “ Cuide deste homem que não sabe o que é a vida; eu vou tomar um banho. A chuva é maravilhosa”…
O marido pôde, então, participar na entrevista. A esposa era conhecida no hospital, onde já tinha sido internada. Mal a mulher ouviu a última palavra berrou: “Você é que vai ficar internado” e fez ameaças que ele não ligou.
No meio de um mexer constante e da contenção do marido soube que não dormia e, nesse dia, ela tinha desarrumado tudo de tanto arrumar, tomado mais de dez banhos; só queria sair porque estaria enfadada com a vida de ócio. As crises pareciam ter desaparecido e ela abandonou os remédios.
Adoecera trinta e cinco anos antes, tinha vários internamentos e seguimento regular naquele hospital desde que mudaram de cidade “para poderem estar perto do filho que podia ajudar nas crises”.
“Crises! – replicou – você é que está em crise, crise de ciúmes e hoje você vai ver o que meu diploma vale”.
Foi por aí que entrei no seu raciocínio e voltaram as gargalhadas, apesar da notável rouquidão.
A decisão foi o internamento. Aceitou, para se ver “livre de um homem doente de ciúmes”.
Depois, foram semanas e meses de convívio, sempre alegre, com os cabelos prateados, a pele branca sem pó de arroz. Inspirava-me simpatia e recordava-me as imagens, as palavras, a rapidez das frases quase ininteligíveis, a actividade exagerada, a alegria e depois a irritabilidade, o “ du coq à l´âne”(literalmente, do galo ao burro, fuga de ideias, para nós),que aprendera a reconhecer anos atrás.
Uma história de um outro tempo. Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra