
Sem dúvidas que ele estava muito diferente. O estímulo à recordação de um tempo revoluto para sempre ou mesmo a oferta de uma ponta de cigarro não serviam para nada. Só a promessa de um passeio sempre almejado fez com que balbuciasse:
- Não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo.
Perante a insistência de uma colega remeteu-nos para as notícias da véspera.
Assim como o nosso homem, a notícia chegara-me pela televisão no dia em que o país assinalava os seus 25 anos de independência. O Serviço ia mesmo ser transferido para Trindade. Num relance fui revendo as cenas.
No acto da segunda inauguração do “Hospital da Trindade” o responsável informou que o mesmo deixara de o ser para tornar-se uma “extensão do Hospital Agostinho Neto” onde vão ficar “a Psiquiatria, a Cozinha, a Lavandaria, o tratamento do lixo e uma morgue com quatro câmaras frigoríficas”.
A televisão ia mostrando as câmaras que eram abertas e fechadas enquanto se propalava sobre a dignidade devida ao doente mental.
Á minha frente, monótono, martelava o infeliz: - Não pode ser, isso é coisa de um outro tempo -.
De uma assentada pretendeu-se dar tratamento devido ao lixo hospitalar, aos defuntos (não se sabendo se serão levados ou se se espera que a “extensão” venha a abastecer as câmaras frigorificas instaladas) e aos doentes mentais. Minha mente fervilhava.
Talvez por demasiado caricato a imprensa não deu eco a um aspecto apresentado como argumento e até aceite por alguns. Há espaço suficiente e o espaço – como o nosso chão cuja independência comemorávamos – é nosso. Podemos perfeitamente dedicar-nos à criação de porcos e se alguém tiver mentalidade empresarial que pense numa verdadeira suinicultura que o mercado está garantido. É o próprio hospital a comprar toda a nossa produção. Fomento para isso não devera faltar. Fiquei triste.
Convenhamos que é muita coisa. Lixo, defuntos, doentes mentais e (agora) porcos. Tudo isso, não muito longe dos privados de liberdade de São Martinho.
E, agora o nosso homem, chorava:
“Não, não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo”. É, coisa de outro tempo! Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra