Depois de algumas semanas de internamento psiquiátrico, o homem habitualmente prolixo sobre as suas façanhas reais ou ingenuamente imaginadas de um passado feito de factos militares, nesse dia, sem qualquer razão aparente, estava cabisbaixo, taciturno. Pretendíamos que ele estivesse se acomodando à enfermaria, como aliás já tinha acontecido noutras ocasiões.
Sem dúvidas que ele estava muito diferente. O estímulo à recordação de um tempo revoluto para sempre ou mesmo a oferta de uma ponta de cigarro não serviam para nada. Só a promessa de um passeio sempre almejado fez com que balbuciasse:
- Não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo.
Perante a insistência de uma colega remeteu-nos para as notícias da véspera.
Assim como o nosso homem, a notícia chegara-me pela televisão no dia em que o país assinalava os seus 25 anos de independência. O Serviço ia mesmo ser transferido para Trindade. Num relance fui revendo as cenas.
No acto da segunda inauguração do “Hospital da Trindade” o responsável informou que o mesmo deixara de o ser para tornar-se uma “extensão do Hospital Agostinho Neto” onde vão ficar “a Psiquiatria, a Cozinha, a Lavandaria, o tratamento do lixo e uma morgue com quatro câmaras frigoríficas”.
A televisão ia mostrando as câmaras que eram abertas e fechadas enquanto se propalava sobre a dignidade devida ao doente mental.
Á minha frente, monótono, martelava o infeliz: - Não pode ser, isso é coisa de um outro tempo -.
De uma assentada pretendeu-se dar tratamento devido ao lixo hospitalar, aos defuntos (não se sabendo se serão levados ou se se espera que a “extensão” venha a abastecer as câmaras frigorificas instaladas) e aos doentes mentais. Minha mente fervilhava.
Talvez por demasiado caricato a imprensa não deu eco a um aspecto apresentado como argumento e até aceite por alguns. Há espaço suficiente e o espaço – como o nosso chão cuja independência comemorávamos – é nosso. Podemos perfeitamente dedicar-nos à criação de porcos e se alguém tiver mentalidade empresarial que pense numa verdadeira suinicultura que o mercado está garantido. É o próprio hospital a comprar toda a nossa produção. Fomento para isso não devera faltar. Fiquei triste.
Convenhamos que é muita coisa. Lixo, defuntos, doentes mentais e (agora) porcos. Tudo isso, não muito longe dos privados de liberdade de São Martinho.
E, agora o nosso homem, chorava:
“Não, não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo”. É, coisa de outro tempo! Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra
Sem dúvidas que ele estava muito diferente. O estímulo à recordação de um tempo revoluto para sempre ou mesmo a oferta de uma ponta de cigarro não serviam para nada. Só a promessa de um passeio sempre almejado fez com que balbuciasse:
- Não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo.
Perante a insistência de uma colega remeteu-nos para as notícias da véspera.
Assim como o nosso homem, a notícia chegara-me pela televisão no dia em que o país assinalava os seus 25 anos de independência. O Serviço ia mesmo ser transferido para Trindade. Num relance fui revendo as cenas.
No acto da segunda inauguração do “Hospital da Trindade” o responsável informou que o mesmo deixara de o ser para tornar-se uma “extensão do Hospital Agostinho Neto” onde vão ficar “a Psiquiatria, a Cozinha, a Lavandaria, o tratamento do lixo e uma morgue com quatro câmaras frigoríficas”.
A televisão ia mostrando as câmaras que eram abertas e fechadas enquanto se propalava sobre a dignidade devida ao doente mental.
Á minha frente, monótono, martelava o infeliz: - Não pode ser, isso é coisa de um outro tempo -.
De uma assentada pretendeu-se dar tratamento devido ao lixo hospitalar, aos defuntos (não se sabendo se serão levados ou se se espera que a “extensão” venha a abastecer as câmaras frigorificas instaladas) e aos doentes mentais. Minha mente fervilhava.
Talvez por demasiado caricato a imprensa não deu eco a um aspecto apresentado como argumento e até aceite por alguns. Há espaço suficiente e o espaço – como o nosso chão cuja independência comemorávamos – é nosso. Podemos perfeitamente dedicar-nos à criação de porcos e se alguém tiver mentalidade empresarial que pense numa verdadeira suinicultura que o mercado está garantido. É o próprio hospital a comprar toda a nossa produção. Fomento para isso não devera faltar. Fiquei triste.
Convenhamos que é muita coisa. Lixo, defuntos, doentes mentais e (agora) porcos. Tudo isso, não muito longe dos privados de liberdade de São Martinho.
E, agora o nosso homem, chorava:
“Não, não pode ser. Isso é coisa de um outro tempo”. É, coisa de outro tempo! Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra