quinta-feira, 26 de março de 2009

Tempo de Loucura




A jovem mulher, visivelmente ansiosa, disse conhecer o companheiro ia para dez anos. Compartilhava com ele o mesmo tecto em períodos alternados com outros que cedia, sem grandes conflitos, a uma rapariga da sua idade.
O homem sempre fora ajuizado, trabalhador e com muita noção de responsabilidade mas tinha perdido o tino e, não lhe era fácil, por mais que tentasse, entender tão manifesta loucura.
A recusa de alimentos e água, o sono difícil e depois perdido, a conversa espremida e que nem sempre dava para entender, o desleixo pela roupa, banho e consigo mesmo só podiam ser sinais inquietantes da loucura que se anunciava.
Um mestre tinha sido consultado uma noite e fora categórico; o mal já estava feito mas a cura poderia estar assegurada em sete dias. O trabalho poderia ser feito ainda antes do nascer do sol se a família consentisse desembolsar a metade das dezenas de contos necessários. Ficando os restantes para quando o homem recuperasse o juízo.
Hora e meia depois, o trato estava feito e o curandeiro procedeu a umas rezas que ela nunca pôde perceber, colocou um pequeno amuleto em tiracolo, de ombro direito à ilharga esquerda do homem, entretanto despido da cintura para cima, e prescreveu três goles diários e em jejum de um líquido turvo de natureza desconhecida.
Apesar de a cura não se ter confirmado no tempo aprazado, uma melhoria ter-se-ia esboçado. Foram mais sete dias de absoluto silêncio e quase total imobilidade!
Mas, depois vieram as vozes estranhas que ninguém ouvia e que ele disse escutar a toda a hora. Tanto quanto isso lhe era permitido ficava isolado e dava impressão que segredava palavras a algum ser imaginário.
Sempre mergulhado naquele estado, dissera sentir-se culpado e atormentado pelos estragos cometidos no seu trabalho. Era empregado numa instituição modesta mas respeitável pelos seus objectivos e feitos, e nunca se soube ao certo se algo de errado ali tivesse acontecido. Desde então, vivia repetindo que “pelos erros devia pagar, morrer, para poder alcançar o reino dos céus”.
Voltei-me para ele. Trazia no rosto, sobretudo nos olhos, toda dor, tristeza e sofrimento deste mundo e, vez ou outra, gemia na maior passividade.
No meio de um gemido que me pareceu não acabar no tempo, creio ter ouvido que havia a outra metade a ser saldada. Porém, continuo sem saber quem teria dito isso. Tempo de loucura!

- Dr. Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra