quinta-feira, 21 de maio de 2009

Tempo de Loucura


Esforcei-me para identificar aquela senhora já sexagenária que numa das minhas passagens pela ilha, a par de outras pessoas, tinha sido apresentada para controle.
Parca em palavras, tardava em falar de si e eu não dispunha de nenhum registo que pudesse ajudar-me.
A aparência, embora não me parecesse estranha não foi suficiente e a tonalidade da voz não me ajudou muito.
O enigma não estava ainda decifrado, mas fiquei mais tranquilo ao supor, racionalmente, que era o jeito próprio dela de lidar com as pessoas às quais aceitou confiar parte dolorosa da sua vida.
Tive que puxar a conversa, à procura de algo que pudesse ser alguma referência, já que ela, desde o início, tinha mostrado que me conhecia, chegando mesmo a citar o meu nome.
Sem ter dado pela minha astúcia ela disse: - Por causa de uns ferimentos fiquei com problemas na cabeça!
Enquanto ela falava com a mesma ternura, lembrei-me, subitamente, daquela mulher que tinha visto alguns anos antes, narrando as acusações veladas, a perseguição e o desespero que quase a levaram à morte, o internamento na Praia, o ser médico de então, por sinal natural da mesma ilha e a brejeirice deste.
Sem nunca pronunciar a palavra, fez-me entender que era tida por feiticeira e que o desespero tinha chegado ao limite suportável quando acusada pela morte de uma criança da vizinhança.
- Não tive outra saída senão pular de uma rocha e daí os ferimentos e os problemas na cabeça.
Após o regresso da Praia, sozinha, sentindo-se hostilizada e perseguida, desfez-se de tudo o que possuía no povoado e rumou para a vila de onde praticamente nunca mais saiu.
Sabia do resto, mas confesso que queria ver se ela podia pronunciar a palavra proscrita. Disfarcei alguma ironia e, falsamente, quis saber o que o médico lhe teria dito para merecer tal fama.
Tentando esforçar um sorriso afirmou:
- Ele era muito brincalhão. Disse-me que estava autorizada a fazer o mesmo serviço com todas as crianças da ilha.
Notava nela um certo embaraço. Sem se recompor, com uma das mãos espalmada no rosto e a cabeça curvada, sempre com a mesma cadência, balbuciou:
- De então para cá fiquei doente, sempre com esta tristeza, esta mágoa…!
Calou-se e continuou a olhar para o regaço, cheia de tristeza e mágoa, que a acompanham há muito tempo. Tempo de loucura!

- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra