quinta-feira, 17 de abril de 2008

TEMPO DE LOUCURA


Por um instante acreditei que o amigo tinha ficado subitamente louco. Não podia pensar de outra forma quando nada levava a prever tão brusca paragem. A velocidade e a potência dos freios levaram a uma rápida derrapagem, seguida de uma imobilização do pequeno automóvel. Minha fronte foi esbater-se no pára brisas com violência.
Mal o engenho ficou imobilizado, meu amigo estava já fora do automóvel, e a passos rápidos atravessou a estrada. Dirigiu-se para a berma onde estava um homem magro, sem idade, sentado, com a cabeça entre as pernas entreabertas e cruzadas.
Tinha um pequeno galho de árvore na mão e talvez estivesse rabiscando algo.
Não tinha ainda percebido o ocorrido e o meu companheiro já tinha voltado. Quis saber de imediato a razão por que quase ia ficar machucado!
Com uma melancolia indisfarçada disse-me que para aquele homem, enrodilhado em si e nos seus pensamentos, aquela simples saudação poderia ter algum valor. Talvez fosse a única satisfação na vida.
Bem que ele tinha tentado, por palavras e gestos mas jamais tinha sido possível retirar-lhe qualquer resposta.
Todas as manhãs, via o homem na escada que dava acesso à igreja. Sempre sisudo, apenas respondia ao “bonjour, monsieur” e, ficava por aí.
Na cidade, nunca dirigia ou respondia a palavra a quem quer que fosse. Parecia viver noutro lugar, noutro mundo.
Retomámos o nosso destino rumo à praia que, ainda, ostentava o nome de uma heroína francesa.
A temperatura do ar, aquecida pelo asfalto em fusão, pelas chamas das florestas sobranceiras à cidade e pela proximidade de refinarias e usinas petroquímicas já não me incomodavam. Meu pensamento ia para aquele homem cuja vida necessitava de apenas um gesto e de apenas uma pessoa.
Certa vez, cheguei mesmo a confessar que este episódio, não sendo decerto determinante, não teria deixado de contribuir para o meu futuro de contacto próximo com a loucura.
Pergunto-me ainda com certa frequência porque teria eu guardado na mente um facto que o tempo tende sempre a tornar inocente! Sobretudo quando meu amigo deixou de fazer parte dos nossos e o pobre homem nunca poderia saber, o quanto ficámos ligados na loucura e na vida. Tempo de loucura!

Dr. Daniel Silves Ferreira

-Psiquiatra-