Tempo de LoucuRa
Era de todos conhecido. Temido de muitos. Evitado por uns tantos. Sabia-se que nos anos cinquenta, ele tinha morto acidentalmente um jovem estudante em férias na sua ilha natal.
Não, a motorizada não era sua! A resposta negativa enfureceu-o e, então atirou uma pedrada certeira quando o rapaz já estava em marcha. Atingido na cabeça, o jovem caiu e, pelo que se contava, morto.
Tratava-se de um homicídio acidental que todos fingiam desconhecer. A revolta era tanta que mesmo um familiar com fama de bom magistrado teria sucumbido ao mesmo erro. Contudo, prevaleceu o inevitável: transferência para a quinta do hospital de Santa Isabel na Praia, onde iria passar os trinta anos seguintes.
Conhecí-o nos tempos da minha meninice e, de certa forma, tivemos alguma convivência na casa onde, por ironia da sorte, viria a morar cerca de vinte e cinco anos depois.
Quando ele conseguia fugir do “pavilhão” – assim também era conhecida a quinta enfermaria - dava um pulo até o meu bairro onde conhecia gente da ilha dele.
A cobertura de colmo da casa onde costumava ficar foi removida e iria ser substituída por telha Marselha. Muitas vezes ele lá dormia em cima das telhas empilhadas usando sacos como lençol e cobertor.
Com um lápis de carpinteiro, escrevia frases sem sentido, nas paredes de casa feita pardieiro. As letras grossas e de contornos arredondados que ele deixava inscritas eram de uma grande beleza para mim, menino apenas iniciado à leitura e à escrita.
De manhãzinha, lá estava ele, de vassoura de folhas de tamareira na mão, varrendo a rua e cantarolando sem parar. Ali mesmo tomava a grandes goles o café que a minha avó lhe oferecia numa caneca de folha-de-flandres que então existia em quase todas as casas.
Eu, meu irmão mais velho e mais alguma criançada estávamos quase sempre por perto. Sabíamos a história que ele nunca deu mostras de se lembrar. Mas quanto a mim, estranhamente, nunca tive medo dele. A sua loucura tinha até causado uma certa admiração minha por ele.
Há uns anos atrás, estando na ilha dele, não pude deixar de ir vê-lo na sua própria aldeia. Mandei chamá-lo e não tardou aparecer, alegre, marcha rápida, postura aprumada, cabelos e barbas brancas, bermudas de caqui americana. Disse-me como se me (re) conhecesse: Então, Eduardo! Esta pasta é minha! Pediu-me um cigarro, despediu-se e foi-se embora.
Nunca mais soube dele mas, quantas vezes, naquela casa onde o conheci e vim a morar, não pensei nele e naqueles dias. Tempo de Loucura!
-Dr. Daniel Silves Ferreira-
Era de todos conhecido. Temido de muitos. Evitado por uns tantos. Sabia-se que nos anos cinquenta, ele tinha morto acidentalmente um jovem estudante em férias na sua ilha natal.
Não, a motorizada não era sua! A resposta negativa enfureceu-o e, então atirou uma pedrada certeira quando o rapaz já estava em marcha. Atingido na cabeça, o jovem caiu e, pelo que se contava, morto.
Tratava-se de um homicídio acidental que todos fingiam desconhecer. A revolta era tanta que mesmo um familiar com fama de bom magistrado teria sucumbido ao mesmo erro. Contudo, prevaleceu o inevitável: transferência para a quinta do hospital de Santa Isabel na Praia, onde iria passar os trinta anos seguintes.
Conhecí-o nos tempos da minha meninice e, de certa forma, tivemos alguma convivência na casa onde, por ironia da sorte, viria a morar cerca de vinte e cinco anos depois.
Quando ele conseguia fugir do “pavilhão” – assim também era conhecida a quinta enfermaria - dava um pulo até o meu bairro onde conhecia gente da ilha dele.
A cobertura de colmo da casa onde costumava ficar foi removida e iria ser substituída por telha Marselha. Muitas vezes ele lá dormia em cima das telhas empilhadas usando sacos como lençol e cobertor.
Com um lápis de carpinteiro, escrevia frases sem sentido, nas paredes de casa feita pardieiro. As letras grossas e de contornos arredondados que ele deixava inscritas eram de uma grande beleza para mim, menino apenas iniciado à leitura e à escrita.
De manhãzinha, lá estava ele, de vassoura de folhas de tamareira na mão, varrendo a rua e cantarolando sem parar. Ali mesmo tomava a grandes goles o café que a minha avó lhe oferecia numa caneca de folha-de-flandres que então existia em quase todas as casas.
Eu, meu irmão mais velho e mais alguma criançada estávamos quase sempre por perto. Sabíamos a história que ele nunca deu mostras de se lembrar. Mas quanto a mim, estranhamente, nunca tive medo dele. A sua loucura tinha até causado uma certa admiração minha por ele.
Há uns anos atrás, estando na ilha dele, não pude deixar de ir vê-lo na sua própria aldeia. Mandei chamá-lo e não tardou aparecer, alegre, marcha rápida, postura aprumada, cabelos e barbas brancas, bermudas de caqui americana. Disse-me como se me (re) conhecesse: Então, Eduardo! Esta pasta é minha! Pediu-me um cigarro, despediu-se e foi-se embora.
Nunca mais soube dele mas, quantas vezes, naquela casa onde o conheci e vim a morar, não pensei nele e naqueles dias. Tempo de Loucura!
-Dr. Daniel Silves Ferreira-
Psiquiatra