
Dos camiões vindos do interior desembarcavam homens, mulheres, famílias inteiras para as festas do fim do ano.
Chegavam notícias estranhas, macabras, de localidades não muito distantes e dos subúrbios da cidade. Homens esfaqueados em brigas fúteis, a nova arma daquela mulher que aproveitara o sono do companheiro para lhe derramar gordura de porco fervente no ouvido, de modo a derreter-lhe os miolos, homens embriagados gritando nas ruas, e já na vizinhança as crises incompreensíveis da jovem donzela que, se dizia, estar possuída de espíritos do outro mundo.
No portal da casa, o velho, apontando a muleta, que sempre lhe conhecemos, para o interior, anunciava o fim do mundo para aqueles dias.
No seu dizer, o fim dos tempos, só dependia dele, mas as constantes advertências não pareciam merecer a curiosidade dos transeuntes.
Dizia que os tempos estavam atribulados, estávamos todos perdidos e, pior, ninguém poderia saber o paradeiro dos seus quando tudo acontecesse.
Então, nada melhor do que ter um sinal facilmente identificável, garantia de um reencontro com os parentes no mundo prestes a chegar.
A advertência agora mais ameaçadora, fez-nos temer o nosso futuro.
Apesar da perna amputada e, (talvez) por causa das suas muletas, as palavras dele eram autoridade para nós.
Repetindo energicamente o nome da velha imobilizada na cama desde que partira os ossos da coxa acima, deu dois passos em frente e dois à esquerda. Estava na presença da anciã. Segurou o lóbulo de uma das orelhas, tirou uma faca afiada da algibeira e agora com alguma pausa martelava:
- Fu-la-na, Fulana de Beltrana. É preciso que te ponha um sinal na orelha para que saibam que és Fu-la-na, Fulana de Beltrana.
A voz roufenha da velha fez-se ouvir e valeu a presteza de um neto, então no serviço militar, que não nos apercebemos como lá apareceu.
O velho, outrora tão simpático, foi então levado para onde não sabíamos, aos berros acerca dos sinais, do fim dos tempos. Tempo de loucura!
- Daniel Silves Ferreira –
- Psiquiatra -