sexta-feira, 20 de junho de 2008

TEMPO DE LOUCURA

Naquele início de tarde do fim do mês de Junho, estávamos à sombra de uma daquelas árvores – cujo nome nunca me preocupei em saber mas que continuo a amar – que ladeavam a rua de norte a sul dando-lhe uma característica típica, para além da evidente frescura, particularmente nas tardes estivais.
De uma das casas das redondezas, ouvíamos o início de “uma canção para o seu trabalho” da então Rádio Clube de Cabo Verde.
Éramos cinco: um adulto próximo, três garotos moradores da mesma rua, possivelmente todos da mesma idade e eu, talvez, uns dois anos mais velho, o que na altura fazia diferença.
O calor era intenso, sufocante e o silêncio era quase total, não fosse a música já referida, que em princípio, deveria incitar as pessoas, para as tarefas da segunda parte do dia.
De forma quase inopinada, sem que nunca tenha entendido a razão um dos moços disse:
- Na nossa rua temos três doidos!
A letargia era tal que a conversa não pareceu despertar a nossa atenção, mas talvez por insatisfação pela falta de reacção que poderia estar à espera ou por simples irreverência, começou a citar os nomes por ele, então, considerados loucos.
Rapidamente, descreveu como pôde o primeiro e não teve problemas em citar o nome. Vendo bem as coisas, o citado devia ter algum problema de aprendizagem. Aliás o futuro veio a prová-lo através de um desempenho escolar muito aquém do esperado e atingido pelos colegas de então.
Ninguém fez caso e o nosso companheiro depois de tecer um ou outro comentário nomeou o segundo que, diga-se a verdade, passava por ter alguma dificuldade mental.
Nossas orelhas continuavam moucas, seguramente porque não discordávamos das suas tiradas intempestivas.
E, todo garboso, o moço rematou:
- O terceiro…
No momento, o adulto que parecia distante da conversa da garotada, certamente sabendo – como nós – a quem iria se referir, pois se lhe atribuía (exageradamente) notável atraso mental e, possivelmente prevendo algum mal-estar com os pais considerados na altura com alguma posse, levantou a cabeça e fixou-lhe os olhos, sem dizer uma palavra.
Repentinamente, o nosso moço, brejeiro como ainda hoje, homem maduro, continua a ser, completou:
- O terceiro sou eu, sou eu o terceiro, sim, sou eu o terceiro!
E o locutor da Rádio, com sua voz forte, anunciou o fim da canção para o trabalho. Loucuras de uma infância cheia de inocência – e de malícia – perdida há muito tempo. Tempo de loucura!
Daniel Silves Ferreira
Psiquiatra