sexta-feira, 27 de junho de 2008

Tempo de Loucura

Com pouco mais de vinte anos, o homem viera enlouquecido de Santo Antão onde fora professor primário. Talvez por isso ligou-se rapidamente aos estudantes e tornou-se frequentador das redondezas do liceu onde cursávamos o último ano.
A presença de pessoas de horizontes diferentes era habitual, mas, o equilíbrio geralmente se mantinha a favor dos estudantes.
Porém, a euforia daquele ex-professor barbudo por tão exagerada não passava despercebida sem que por isso perdesse a nossa estima.
Merecia até uma atenção especial da nossa parte pelo seu jeito de falar, seu discurso e sobretudo pela alegria e gargalhadas quase constantes.
Nesse dia todas as actividades escolares estavam canceladas, devendo cada um de nós participar na recepção pública de uma comitiva de um país amigo.
A concentração era na praça central da cidade. O professor em férias forçadas acompanhou-nos. No local aninhámo-nos sob uma árvore e o amigo, muito animado não parava de falar.
Da varanda que servia de podium, alguém deu inicio à cerimónia. A apresentação dos visitantes era feita de forma intercalada com os vivas que a multidão respondia em uníssono e alguns aplausos ruidosos e prolongados. O homem transbordava de energia.
Depois das primeiras apresentações vieram homens e mulheres de condição visivelmente humilde. As palavras sobre o seu passado eram elogiosas e alguns tinham ascendido a lugares de alguma responsabilidade.
Regozijámo-nos sobretudo com a presença em tão alta delegação dessas mulheres que logo apresentadas, gritavam vivas com um sotaque peculiar.
Não durou muito que, mal chegasse uma das nossas predilectas, o nosso homem numa euforia singular, dobrava a língua e imitava, deturpando um pouco a pronúncia, de forma a gritar vivas às “palhas de chá”. E sem transição, o alecrim, a losna, a belgata, a cidreira e toda ervanária tradicional eram lembrados em vivas no meio de gargalhadas, para nossa grande satisfação.
Estranho foi o facto de alguns dias mais tarde num funeral de uma adolescente, quando alguém se lembrou do discurso fúnebre, ele se ter lembrado de novo dos seus vivas à ervanária nacional. Chegou-se a desconfiar que algum estudante o teria incitado.
Não passou muito tempo, tivemos a noticia que nosso amigo se enforcara num pardieiro do seu bairro. Na verdade, pouco tempo. Tempo de loucura!

- Daniel Silves Ferreira –
Psiquiatra